No final da década de 1960, em um mercado automobilístico dominado pelo Volkswagen Fusca e outros modelos de montadoras estrangeiras, como a Rural, o Jeep e o Aero Willys, surge uma novidade que mudou a história dos carros nacionais. Nas mãos da Ford, que havia recentemente adquirido a Willys Overland do Brasil, um protótipo conhecido como “Projeto M” se transformou em um dos modelos mais importantes para o mercado automotivo brasileiro: o Ford Corcel. E quase que esse carro, tão emblemático, não saiu do papel.
Uma Herança Quase Perdida: O Projeto M
Antes de ser incorporada à Ford, a Willys estava trabalhando em um projeto em colaboração com a Renault francesa. Esse modelo, que mais tarde seria lançado na Europa como Renault 12, foi desenvolvido com forte influência dos designers brasileiros. O “V” da grade frontal, por exemplo, é claramente inspirado nos elementos da Rural e do Aero Willys, marcas da época.
Max Pearce, então presidente da Willys, teve papel essencial para garantir o avanço do Corcel. Conseguiu um empréstimo de 7,5 milhões de dólares (aproximadamente R$ 40 milhões nos valores atuais), permitindo que o protótipo se transformasse em um carro de produção. No entanto, a entrada da Ford foi determinante para que o Corcel finalmente visse a luz do dia. A Ford, que já realizava testes com o modelo em França e Estados Unidos, acabou por comprar a Willys e assumiu o projeto como seu.
Nasce o Ford Corcel 1: O Sedã de “Raça” Brasileira
Lançado em 1968, o Ford Corcel foi introduzido como um sedã de quatro portas, mas logo depois, em 1969, ganhou uma versão cupê. O nome “Corcel” – escolhido para evocar a conexão com o famoso Ford Mustang, um sucesso de vendas nos Estados Unidos – destacou o veículo como um modelo forte e confiável, adaptado para o público brasileiro.
O Corcel logo conquistou o mercado nacional, oferecendo algo que os concorrentes da época não podiam: conforto, economia e uma condução silenciosa. Esse modelo rapidamente se tornou referência entre os carros pequenos e médios do Brasil, com características modernas para o período. Além da versão sedã, a família Corcel ainda se completou com a perua Belina, que trazia um painel lateral imitando madeira, e o esportivo GT, com faixas decorativas e motor de maior potência.
Motor, Tração e Sistema de Arrefecimento Inovador
O Ford Corcel 1 tinha um motor 1.3 de 1289 cm³ e 62 cavalos de potência, sendo um dos primeiros a introduzir o sistema de radiador selado no país. Esse sistema inovador dispensava a reposição constante de água, mantendo o nível e a qualidade do fluido de arrefecimento em um recipiente de vidro.
Em termos de desempenho, o Corcel oferecia uma tração dianteira, conhecida pelos brasileiros através dos modelos DKW Vemag. Essa configuração proporcionava maior estabilidade e controle, especialmente em estradas de asfalto ou condições mais adversas. No entanto, em subidas escorregadias, o carro sofria para manter o desempenho, principalmente quando carregado. O eixo dianteiro podia apresentar patinação, e a aderência dos pneus tornava-se essencial para enfrentar terrenos mais desafiadores.
Desempenho em Testes: Potência e Precisão
O desempenho do Corcel em testes de revistas especializadas da época, como a QUATRO RODAS, demonstrou que o modelo era mais do que apenas um rosto bonito. No teste realizado em outubro de 1968, a precisão dos engates do câmbio foi especialmente destacada. De acordo com o jornalista Expedito Marazzi, o câmbio manual de quatro marchas do Corcel permitia mudanças precisas e rápidas, uma característica inédita para a época. “Nunca havíamos conseguido mudar as marchas corretamente em menos de dois décimos de segundo”, dizia a análise.
Quanto ao desempenho do motor, os 62 cv permitiam ao carro atingir uma velocidade máxima de cerca de 130 km/h. A aceleração de 0 a 100 km/h era feita em aproximadamente 23,6 segundos, o que hoje pode parecer modesto, mas à época era um tempo bastante razoável para um sedã de tração dianteira.
O Desempenho em Pista: Testado por Fittipaldi e Chapman
A trajetória do Corcel também cruzou com a vida de Emerson Fittipaldi e Colin Chapman, lenda da Fórmula 1 e diretor da equipe Lotus. Em 1972, os dois testaram a versão GT do Corcel no Autódromo de Interlagos, e o feedback foi misto. Fittipaldi gostou da estabilidade do carro, enquanto Chapman sentiu que ela não era suficiente para o que esperava. Ambos, no entanto, concordaram que o motor era “insuficiente” para um desempenho mais competitivo em pista.
Interior e Conforto: Um Novo Padrão para os Brasileiros
A Ford caprichou nos detalhes internos do Corcel, e isso foi um grande diferencial para o modelo. Os bancos eram confortáveis e o acabamento superava as expectativas para a categoria. O veículo de 1969, testado pela QUATRO RODAS, era uma versão standard, mas com toques que remetiam ao modelo de luxo. A direção, embora não fosse hidráulica, era leve e fácil de manusear, especialmente em manobras urbanas.
Outro destaque do Corcel era o seu freio de mão, localizado no centro do painel, que exigia uma operação um tanto incomum: para soltá-lo, era preciso virar a alavanca no sentido anti-horário. O grande volante, herdado do Aero Willys, transmitia ao motorista uma sensação de controle, permitindo sentir cada irregularidade do piso.
Durabilidade e Sucesso: Mais de Meio Milhão de Unidades Vendidas
O Ford Corcel 1 manteve-se praticamente inalterado durante uma década, com quase 650.000 unidades vendidas até o ano de 1977. Foi um verdadeiro sucesso de vendas, e essa longevidade mostra o quanto o modelo era confiável e apreciado pelos brasileiros. Mesmo sem passar por grandes alterações mecânicas ou de design, o Corcel provou sua relevância no mercado nacional e construiu uma base de fãs leais que perdura até hoje.
Corcel II: Um Novo Começo para um Clássico Brasileiro
Em 1978, a Ford introduziu uma versão totalmente renovada do Corcel, batizada de Corcel II. Esse modelo, com um design mais moderno, conquistou rapidamente o público e trouxe novidades, como a versão picape, chamada de Pampa, que ampliou o apelo da marca para outros segmentos. O Corcel II continuou em produção até 1986, sobrevivendo assim a quase duas décadas de mercado, consolidando-se como um dos carros mais duráveis da Ford no Brasil.
Legado do Ford Corcel: Um Clássico de Rua e de Garagem
Até hoje, é comum ver entusiastas de carros clássicos que restauram e cuidam de seus Corcel 1, especialmente os modelos GT e as raras versões cupê e perua. Muitos ainda preservam a qualidade da suspensão original, famosa por seu conforto e resistência às irregularidades das estradas brasileiras. Os preços de modelos restaurados variam, mas podem alcançar cifras superiores a R$ 50.000, dependendo do estado de conservação.
O Ford Corcel 1 representa, sem dúvida, um dos marcos na história automotiva do Brasil. Com seu design icônico, mecânica confiável e inovação para a época, ele ajudou a estabelecer um padrão de qualidade e conforto para os veículos nacionais.